POR TIAGO ALMEIDA
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A recente publicação do novo edital do CACD trouxe uma surpresa interessante: a inclusão do tema “Criptomoedas, blockchain e os impactos na economia mundial” na matéria Política Internacional. Trata-se de uma indicação de que o Itamaraty, em algum nível, acompanha um dos mais importantes e francamente revolucionários fenômenos a borbulhar sob a superfície. Sei que o assunto é pouco conhecido e, portanto, preparei esta resenha, que poderá ajudar alguns candidatos a diplomata.
Antecedentes
A criptografia é uma área do conhecimento humano que ocupa a interseção entre a matemática e a ciência da computação, tratando da segurança (privacidade) nas comunicações. Embora comumente ignorada, não é menos que um elemento fundamental à infraestrutura do mundo moderno. Sem a criptografia, não seria possível que se operassem na Internet quaisquer atividades sensíveis. É a tecnologia por trás do cadeado verde que aparece no seu navegador quando visita uma página pelo protocolo “https”, como páginas de bancos ou de lojas virtuais. Há uma tendência crescente de que a maioria ou até totalidade das páginas da Internet utilizem esse protocolo, o que conferirá maior privacidade à navegação.
Entenda-se que houve, nas últimas décadas, avanços extraordinários nessa disciplina, um verdadeiro espetáculo da engenhosidade humana observado apenas pelas proporcionalmente poucas pessoas qualificadas a compreendê-lo. Em torno do tema, formou-se, no início do século, um grupo conhecido como “cypherpunks”, reunindo pessoas que intuíam consequências radicais dessas novas descobertas em criptografia. Em particular, imaginavam a possibilidade de utilizá-la para criar uma espécie de dinheiro virtual, livre da intervenção estatal, ideia que apetece a libertários. No entanto, após dúzias de propostas e algumas tentativas, não se encontrava expressão que, com sucesso, realizasse essas ambições.
Assim foi até que a crise de 2008, que chegou ao limiar de provocar a falência de alguns dos maiores bancos americanos, salvos da ruína apenas pela mão visível do Banco Central americano e abalando a confiança geral no sistema financeiro internacional. À época, se entendia que seriam necessárias reformas radicais para impedir que o problema se repetisse, mas a realidade é que não houve mudanças significativas.
Para os cypherpunks, no entanto, a crise era uma prova de que sua intuição sobre o dinheiro criptográfico era verdadeira. Ao fim de 2008, um deles, sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto, publicou o “whitepaper” do Bitcoin, intitulado “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, um documento de apenas nove páginas que explicava todo o funcionamento do Bitcoin.
O sistema ali descrito entrou em operação em janeiro de 2009. Desde então, jamais parou de funcionar e deverá continuar funcionando até o fim dos tempos. Foi um marco extraordinário na história da humanidade, embora pouquíssima gente o tenha percebido à época, ou mesmo o perceba hoje — embora o sistema Bitcoin utilize, anualmente, tanta energia elétrica quanto a Colômbia.
O Bitcoin
Mas o que é, afinal, o Bitcoin? Concretamente, é um arquivo de computador de um novo tipo, chamado “blockchain”, algo como “corrente de blocos”. Como um arquivo “.doc”, a blockchain pode ser lida por diversos programas (Word, OpenOffice, Google Docs etc.) de diversas formas. Para interagir com a blockchain, esses programas precisam ser compatíveis com o arquivo, seguindo as regras determinadas originalmente por Nakamoto.
Mas a blockchain do Bitcoin não existe apenas em um computador, porém em milhares de computadores, que se comunicam pela Internet. Cada mudança que se opere na blockchain — como a criação ou transferência de bitcoins — precisa ser objeto de concordância da maioria dos computadores que, ao manter uma cópia da blockchain e comunicar-se com os outros que fazem o mesmo, mantêm o Bitcoin em operação.
Quanto maior o número de computadores operando a blockchain do Bitcoin, mais seguro é o sistema, porque torna-se mais dispendioso controlar uma quantidade majoritária. Hoje, seria necessário gastar bilhões de dólares em supercomputadores e energia para que se tivesse, por algumas horas, papel majoritário na operação da blockchain do Bitcoin. Como essa é a única maneira de “hackear” o Bitcoin, esses são os termos da segurança do sistema.
O que de fato fazem todos esses computadores, efetivamente um supercomputador descentralizado pelo planeta? Calculam problemas matemáticos extremamente complexos. A cada dez minutos, operações matemáticas cada vez mais complexas são apresentadas à rede de computadores, que se ocupa de solucioná-las. Com a mesma frequência, uma quantidade de bitcoins é criada e distribuída entre os computadores que participaram do cálculo.
Ao mesmo tempo em que realizam esses cálculos, a cada solução encontrada, esses computadores disseminam entre si as transações do bitcoin — mais precisamente, o registro das operações envolve a solução das equações. Uma vez que uma operação foi registrada na blockchain, é impossível revertê-la.
Com isso, replica-se no bitcoin uma das funções básicas dos bancos: guardar o seu dinheiro e transferi-lo às contas de outras pessoas, com a sua autorização.
Há, no entanto, um diferencial importante: enquanto apenas você e seu banco podem ver suas operações bancárias, as operações da sua “carteira” (“wallet”) de Bitcoin são públicas. Quem conheça o endereço da sua carteira terá acesso a seu saldo de bitcoins, assim como a todas as suas transações passadas. Faz sentido pensar nisso como um perfil público no Facebook ou no Twitter. É possível evitar esse problema de diversas maneiras: existem formas de misturar seus bitcoins com os de outras pessoas, depois removê-los para uma nova carteira.
Ao longo dos anos, o valor de mercado de um bitcoin flutuou muito, passando por vários ciclos de impensável valorização, seguida de queda acentuada e repentina. Nesse ínterim, o próprio Bitcoin mudou de natureza. Se, originalmente, era visto como um projeto de substituto para o dinheiro, hoje é mais comumente descrito como uma reserva de valor, comparável ao ouro.
A influência do Bitcoin
Após o sucesso do Bitcoin, surgiram outros projetos semelhantes, com premissas diferentes.
Entre eles, hoje, o principal e mais avançado projeto de blockchain é o Ethereum, que concentrou os esforços e desenvolvimentos dos programadores interessados na área de criptomoedas e blockchain após a virtual paralisia do Bitcoin como “reserva de valor” sem demais ambições de avanço tecnológico. Por esse motivo, o Ethereum é também o projeto mais interessante, pelo ponto de vista das relações internacionais.
O Ethereum foi criado em 2013, quando Vitalik Buterin, cidadão russo-canadense, percebeu outros usos possíveis para o sistema blockchain, além de simplesmente registrar operações monetárias. A idéia de Buterin era criar um computador descentralizado capaz de operar programas de computador, assim como os computadores que fazem parte da rede do Bitcoin operam as transações dos usuários. Ou seja, o Ethereum tem um grande potencial aberto: ele permite que outras pessoas utilizem esse supercomputador descentralizado como quiserem.
Hoje, em toda a área de criptomoedas inaugurada pelo Bitcoin, o Ethereum é o projeto que mais atrai a atenção de programadores e empreendedores. O Ethereum almeja tornar-se uma espécie de superestrutura da Internet em que se realizariam muitas atividades econômicas do mundo moderno, por exemplo, operações de bolsa de valores e compras de imóveis. Por exemplo, é possível que o nascimento dos seus netos seja registrado na blockchain do Ethereum, tornando-se um ato jurídico válido no Brasil, verificável a qualquer momento por qualquer pessoa do planeta, sem que uma única folha de papel precisasse ser impressa, copiada, arquivada, fotografada, digitalizada, enviada por correio ou mesmo pela Internet. Bastaria mostrar uma série de números e letras que indicam a localização daquela informação na blockchain.
Na Política Internacional
Com isso, chegamos ao nosso destino final, o concurso do Itamaraty. Como é possível que um assunto tão arcano, futurista e francamente anárquico possa ter ido parar no edital do CACD? Não é um mistério tão grande: fóruns internacionais na área de finanças já começam a lidar com a tempestade que se aproxima.
O trecho abaixo foi incluído no documento final da reunião dos ministérios das finanças e presidentes de banco central dos países do G-20, em março de 2018: “We ask the FSB, in consultation with other SSBs, including CPMI and IOSCO, and FATF to report in July 2018 on their work in crypto-assets”. Primeiramente, vejamos quais são essas organizações:
- FSB: Financial Stability Board, estabelecido pelo G-20 em 2009.
- SSB: “standard-setting bodies”, organizações que determinam padrões internacionais.
- CPMI: Committee on Payments and Market Infrastructure, inicialmente criado em 1990, assumiu o nome atual em 2014. Comitê constituído pelos bancos centrais dos países do G-10.
- IOSCO: International Organization of Securities Commission, criada em 1993, inclui membros de mais de 100 países, que regulam mais de 95% do mercado de ações global.
- FATF: Financial Action Task Force on Money Laundering, criada em 1989, para analizar a questão da lavagem de dinheiro.
Ou seja: em 2018, autoridades financeiras dos países do G-20 pediram a uma série de organizações e grupos internacionais que apresentassem, após um período de quatro meses, um relatório sobre “crypto-assets”, ou seja, cripto-bens, bens criptográficos, uma forma de dizer que são bens registrados em blockchains, como as do Bitcoin e do Ethereum.
O mesmo grupo de autoridades do G-20 se encontrou novamente em julho, de posse do relatório solicitado. Em resumo, o documento conclui que os cripto-bens não oferecem risco à estabilidade financeira global, mas levantam uma série de preocupações em termos de proteção do investidor e de seu uso em atividades ilícitas, como a lavagem de dinheiro. Em 2019, o FSB apresentou outro breve relatório da mesma natureza, sem mudanças significativas no tom e na linguagem.
“…e os impactos na economia mundial”
Até esse ponto, acredito que apresentei o assunto de maneira relativamente exaustiva para o nível em que deverá ser cobrado no concurso. No entanto, o tema, no edital, termina com a expressão “e os impactos na economia mundial”. Essa parte é um tanto intrigante porque a verdade é que seus efeitos sobre a economia mundial são, hoje, mínimos e insignificantes, enquanto a especulação quanto a seu futuro beira à ficção científica. Não imagino como essa área poderia ser cobrada no concurso, mas as considerações a seguir poderão servir de guia para suas próprias idéias sobre o assunto.
Acima, indiquei que houve uma mudança de entendimento acerca do Bitcoin, de “peer-to-peer cash” para “store of value”. Nessa visão, o Bitcoin seria uma forma de resguardar o seu dinheiro de crises econômicas e da inflação. Hipoteticamente, bancos centrais poderiam fazer o mesmo, como fazem com o ouro. Essa não é uma visão particularmente realista, na minha opinião. O preço de um bitcoin varia muito e, portanto, tem papel mais próximo ao de uma ação da bolsa de valores. Não acredito que haverá um período em que esse preço se estabilizará, não vejo motivo para que aconteça, dentro da lógica de mercado. Comprar um bitcoin pode ser um investimento extraordinariamente lucrativo ou pode ser uma ótima maneira de perder metade do seu dinheiro, dependendo de quando você o comprou e o vendeu. Há projetos que buscam tornar o Bitcoin mais útil, como a “Lightning Network”, que diminuiria as taxas de transação o bastante para que pudesse ser utilizado como moeda de compra, mas esses projetos não são os mais interessantes em desenvolvimento.
Os mais interessantes projetos, hoje, ocorrem na blockchain do Ethereum, o computador descentralizado idealizado por Vitalik Buterin. Analisemos, então, alguns desses projetos e que impacto poderiam ter sobre a economia mundial.
Na blockchain do Ethereum, publicam-se “dapps”, aplicativos descentralizados. Em geral, para utilizar esses aplicativos, você precisa pagar taxas de operação. Em muitos casos, essas taxas são pagas em uma moeda (“token”) criada pelo próprio aplicativo, cujo valor é semelhante ao de uma ação, variando de acordo com as perspectivas de sucesso daquele aplicativo. Há aplicativos que reproduzem cassinos, loterias, bancos, fóruns de discussão, bolsas de valores, mercados de apostas, jogos, entre muitos outros. A título de exemplo, existe um navegador chamado Brave (em que escrevo este artigo neste mesmo instante) que inclui, embutido, um bloqueador de propagandas. No entanto, ao utilizar o Brave, na realidade, uma parte das propagandas bloqueadas é substituída por outras. A cada vez que você vê uma dessas propagandas, você é pago um pequeno valor em BAT, o token criado pelo projeto. Você pode, então, converter seus BATs para outro token, vendê-los etc., mas pode também indicar ao navegador que esses tokens recebidos sejam então distribuídos às páginas que você visita. Como resultado, temos um navegador que inclui um modelo de sustento da própria Internet, cuja parte monetária funciona na blockchain do Ethereum.
Há, ainda, um tipo especial de token, as “stable coins”, “moedas estáveis”. É possível, de posse de uma quantidade de “ether”, a moeda central do Ethereum, utilizada para pagar pelos recursos computacionais que você solicita da rede, fazer um empréstimo (a juros) de moedas estáveis, entre as quais o DAI é o mais promissor. Esse empréstimo (“CDP debt”) é feito de maneira descentralizada, “trustless”, não exigindo que você confie em qualquer autoridade estatal, porém apenas no programa descentralizado “Maker DAO”, que, tudo indica, de fato não pode ser hackeado. De posse de uma quantidade de DAI, cujo valor é estável em relação ao dólar americano, pode-se imaginar um mundo em que você é pago em DAI e o utiliza para pagar suas contas. Que vantagem haveria nisso? Para todos os efeitos, um DAI é um dólar americano que pode ser utilizado na blockchain do Ethereum. Se você prefere investir em empreendimentos que funcionam na blockchain do Ethereum (como o próprio Maker DAO) do que na bolsa de valores, então um DAI é mais conveniente do que um dólar americano.
Da mesma forma que um dólar americano pode ser comercializado na blockchain do Ethereum, também é possível fazê-lo com ações de bolsas de valores. Para tanto, bastaria que uma quantidade de ações da Apple, por exemplo, fosse emitida como “token” na blockchain do Ethereum. A Apple poderia realizar essa operação com credibilidade, assim como qualquer instituição de confiança, mas idealmente a custódia de ações “reais” da Apple, na bolsa de valores americana, seria garantida criptograficamente e verificável na blockchain do Ethereum. Não é tão difícil de imaginar, pois os fundos indexados já funcionam assim: na bolsa brasileira, você pode comprar ações BOVA11, que correspondem a um apanhado de ações da Bovespa. Não haveria impedimento técnico para que a mesma empresa responsável pela BOVA11 emitisse também sua versão tokenizada, comercializável na blockchain do Ethereum. Algumas pessoas acreditam que, em alguns anos, as bolsas de ações migrariam para a blockchain do Ethereum — ou outra de sua criação.
O mesmo poderia ocorrer com títulos de imóveis, por exemplo, bastando para isso que a transferência do título, na blockchain, fosse reconhecida pelo Estado do país em que o imóvel existe. Novamente, é uma situação que não encontra obstáculos técnicos, mas apenas a aquiescência estatal.
Ninguém sabe se esse projeto ambicioso se tornará realidade, nem com quais características. Só se saberá quando o assunto for acrescentado à matéria História Mundial.
Tiago Almeida
Diplomata
Tiago Almeida é diplomata de carreira e geógrafo. Segundo-secretário da carreira de diplomata. Atualmente serve no Escritório de Representação do Brasil em Taiwan. Membro fundador da Præterea e do Grupo Ubique.
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